terça-feira, 2 de novembro de 2010

vivências de uma escriba


                                                                                                                                                         9
No mês de Novembro de de 1974, encontrava-se Portugal ainda no rescaldo das alterações políticas que erradicaram o Salazarismo do poder político, a nossa escriba, Maria, de seu nome, ingressou, na cidade onde residia, nos Serviços, nos quais viria a decorrer a sua carreira profissional, em diversas Repartições do País. Era escriba praticante, ou seja, cumpria o horário integralmente, como os outros escribas, sendo que entravam sempre antes da hora prevista e saíam bem depois do horário de trabalho expirado, porque o volume de trabalho a isso obrigava, não havendo pagamento das inúmeras horas extraordinárias! Sendo praticante, não tinha direito a qualquer salário, mas, em compensação, fazia certas tarefas que mais ninguém queria. Esteve, nessas condições, largos meses, até que a chefe escriba, entendendo que era um elemento válido para o trabalho da repartição, cujo quadro de pessoal era diminuto, conseguiu que a tutela dos Serviços lhe concedesse a categoria de escriba assalariada, por um prazo de seis meses, que seria prorrogado por outros seis meses, tendo, no entanto, um dia de intervalo, no qual  seria escriba praticante.
Enquanto escriba assalariada, recebia vencimento. Mas o assalariamento não podia durar muito tempo. Foi aconselhada a concorrer para os lugares de escriba escrituraria, que viessem a concurso, a nível do País, de modo a alcançar estabilidade profissional. Assim o fez. Os requerimentos, a solicitar a admissão aos concursos, eram manuscritos em papel selado, hoje inexistente, com assinatura reconhecida em cartório notarial. Um dos 14 requerimentos, nos quais impetrou um lugar, conduziu-a à Rua de Santa Catarina, na Invicta!
Existiam ainda muitos resquícios, da época anterior ao 25 de Abril, nos organismos Públicos. Cada ofício, (ainda não tinha telefone, a repartição), dirigido à tutela, era cuidadosamente estudado e redigido com servilismo, e as inspecções de rotina, efectuadas periodicamente, eram encaradas com muito receio, por parte de todos os elementos do Serviço. A hierarquia, nos próprios Serviços, tinha regras muito rígidas, sendo que até nas secretárias, de madeira, feitas por prisioneiros, havia distinção quanto ao tamanho, consoante a categoria para quem se destinavam! E, bater à porta do gabinete do dirigente escriba, para tratar de assunto que só ele podia decidir, implicava que,  cautelosamente, averiguar junto do colega de categoria superior, se tal era possível, naquele momento!
Num calhamaço enorme, denominado "livro diário", anotavam-se, por ordem cronológica, todos os actos elaborados na repartição, bem como os respectivos emolumentos e imposto de selo. Era prática corrente, embora não legislada, que nesse livro figurasse sempre a mesma letra, e que não se fizessem rasuras ou emendas. Ora, isto levava a que os funcionários, com os documentos quase prontos para entregar aos utentes, tivessem de "arranjar" vez, para que o escriba responsável por tão delicada missão, lançasse o documento no livro diário, dando-lhe o competente número, após o que lhe era aposto o selo branco. Todos os escribas trabalhavam demasiadas horas, porquanto eram poucos para o Serviço que havia para concretizar, situação considerada normal pela Tutela dos mesmos! Havia muitos utentes que nunca tinham precisado de obter certos documentos, os quais, agora, se tornavam necessários.


0 comentários:

 

Term of Use

conversaqui Copyright © 2009 Flower Garden is Designed by Ipietoon for Tadpole's Notez Flower Image by Dapino